"E se o socialismo estiver tão moderado no tocante a luta de classes e a propriedade particular, que já não mereça nisto a mínima censura? Terá renunciado por isso a sua natureza essencialmente anticristã? (...) Socialismo religioso, socialismo cristão, são termos contraditórios: ninguém pode ao mesmo tempo ser bom católico e socialista verdadeiro. (...) Para lhes respondermos, como pede a Nossa paterna solicitude, declaramos: o socialismo, quer se considere como doutrina, quer como fato histórico, ou como ‘ação’, se é verdadeiro socialismo, mesmo depois de se aproximar da verdade e da justiça nos pontos sobreditos, não pode conciliar-se com a doutrina católica, pois concebe a sociedade de modo completamente avesso a verdade cristã (...)" ( Pio XI, Quadragesimo Anno, nos. 117, 119 e 120).

O economista austríaco Ludwig Von Mises afirmou: "O socialismo não fracassou por causa da resistência ideológica — até hoje, a ideologia dominante é a socialista. Fracassou pela sua inviabilidade”. Este fato pode ser constatado com muita facilidade se conversarmos brevemente com os nossos jovens, sobretudo os que frequentam os cursos de Ciências Humanas nas diversas faculdades espalhadas pelo nosso imenso país. Muitos deles receberam educação católica e estiveram em nossas paróquias por um bom tempo, mas a semente da fé plantada em seus corações terminou sufocada por essa ideologia completamente hostil à verdade do Evangelho. Diante desse quadro, vem-nos a pergunta: como um sistema que causou (e continua causando) tantas matanças, sofrimento, fome e que colecionou monstruosos fracassos históricos ainda pode exercer tamanha sedução sobre nossos jovens? A resposta oferecida por Von Mises tem precisão quase cirúrgica: a ideologia socialista segue viva e continua a ser amplamente ensinada como verdade absoluta em muitas escolas e universidades. A isso se acrescentam a ignorância e desinformação reinantes quando o assunto é a atualidade do socialismo (mesmo após a queda da URSS): sua sobrevivência e influência em muitos partidos e projetos políticos. No século XX, alguns teóricos socialistas, como o italiano Antonio Gramsci e os alemães da Escola de Frankfurt, tomaram a decisão de priorizar a revolução cultural sobre a reformulação econômica, adiando esta última. Esta estratégia tem sido tremendamente vitoriosa e seus efeitos são muito visíveis, como já dissemos. No presente artigo, trataremos das bases ateístas e antirreligiosas da doutrina socialista e de suas contradições com a fé da Igreja. É muito importante rastrear e estudar a genealogia das ideias, afinal, como bem disse Hugo von Hofmannsthal: “nada está na realidade política de um país que não esteja antes na sua literatura”. Nos próximos artigos, falaremos dos rumos e mudanças do socialismo enquanto pensamento e também como movimento político ao longo do século XX e neste início de século XXI.

 

A religião como alienação

Karl Marx (1818-1883), o pai do autoproclamado “socialismo científico” (que seria, segundo ele, o único caminho viável para se alcançar o comunismo: sociedade igualitária sem classes sociais) afirma, com base em Feuerbach, que é o homem que cria Deus e não vice-versa. O ser humano transfere para Deus a responsabilidade de pôr fim às injustiças. Como Deus só poderia fazer isso na vida eterna, o homem, aqui e agora, acaba se conformando com a exploração de que é objeto: “a religião é o ópio do povo”. Contudo, essa alienação de nosso ser, projetado em um Deus imaginário só ocorre porque a existência real na sociedade de classes impede o desenvolvimento e a realização de nossa humanidade. Bastaria, pois, que eliminássemos as desigualdades sociais para que a necessidade de um Deus sumisse dos corações humanos. Disso deriva que, para superar a alienação religiosa, não basta denunciá-la, mas é preciso mudar as condições de vida que permitem à “quimera celeste” surgir e prosperar. Diz Marx: “A miséria religiosa é a expressão da miséria real em um sentido e, em outro, é o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração, o espírito de situações em que o espírito está ausente. Ela é o ópio do povo”.

O socialismo é, portanto, inimigo de Deus e das religiões organizadas, além de essencialmente materialista, por negar à vida humana qualquer caráter espiritual e transcendente. Trata-se, para usar uma expressão de Eric Voegelin, de uma “religião política”, em que o sentido sobrenatural da vida humana, uma vez considerado alienante, é trocado por um simulacro de narrativa de redenção, com a promessa de um paraíso político. Por isso, a ideologia é naturalmente violenta e revolucionária. A crítica ao céu catalisa o ânimo revolucionário na terra.

Ora, é evidente que essa crítica à religião se trata de um pensamento metonímico, isto é, a parte passa a ser considerada como se fosse o conjunto. O filósofo italiano Giovanni Reale, com muita perspicácia, aponta o erro de Marx: “(...) também não podemos aceitar a teoria marxista segundo a qual ‘a religião é o ópio do povo’. Essa teoria é discurso de um fiel de outra religião. Com efeito, o marxismo clássico confundiu um tipo de organização eclesiástica histórica com a religião em si e com todas as religiões. Assim, absolutizou um fato histórico. A consciência religiosa não é reacionária em si mesma; ela não afasta por si mesma os olhos dos homens desta terra; ela não é em si mesma o ópio do povo”. De fato, uma breve análise da história da nossa civilização nos faz notar que são abundantes os exemplos do legado social deixado pela religião: a moral familiar, o conceito de pessoa, os direitos individuais, a preservação da cultura, o patrimônio artístico e literário, as instituições caritativas e um longuíssimo etcétera, a ponto de Nicolás Gómez D’Ávila afirmar: “Despido da túnica cristã e da toga clássica, nada resta do europeu além de um bárbaro pálido”.  A consciência de que o nosso destino eterno depende do que fazemos aqui e agora, longe de ser uma força alienante, sempre colocou os homens em atitude de vigilância constante sobre as próprias ações. A visão da religião como mero instrumento mediante o qual a classe dominante neutraliza as energias revolucionárias da classe dominada é um reducionismo inaceitável. Quem pode negar o papel da religião como a grande força viva e atuante na história que leva a comunidade humana a garantir a sobrevivência dos fracos e doentes? Chesterton, um grande escritor católico do século passado, também aponta este grave erro de compreensão: "Para a religião, todos os homens são iguais assim como todos os centavos são iguais, pois só há valor neles porque carregam a imagem do Rei. Este fato não é suficientemente observado no estudo dos heróis religiosos. A piedade produz grandeza intelectual precisamente porque ela é indiferente à grandeza intelectual. A força de Oliver Cromwell (Lorde protetor da Inglaterra no séc. XVII) residia no fato de que ele se importava com a religião. Mas a força da religião é que ela não se importa com Cromwell, não mais do que com qualquer outra pessoa. Ele e seu séquito são igualmente bem-vindos aos lugares quentes e hospitaleiros do inferno. Tem sido afirmado, muito acertadamente, que a religião é a coisa que faz o homem ordinário se sentir extraordinário; é uma verdade igualmente importante que a religião é a coisa que faz o homem extraordinário se sentir ordinário”.

Karl Marx, na prática, substitui Deus pela política. No tribunal da História, percebemos com pesar que, onde Deus deixa de ser adorado, o Estado ocupa o seu lugar. Os efeitos dessa inversão foram e continuam sendo funestos. O filósofo alemão tem como pressuposto de toda sua filosofia uma visão limitada, parcial e preconceituosa sobre o homem. Entende-o como um ser essencialmente econômico e que pode ser satisfeito com o bem-estar material, deixando com isso de sentir a necessidade de “criar um Deus” para o seu conforto. Eis aí um gravíssimo erro antropológico, que ignora o problema da morte. O homem de Marx é alguém com uma dimensão a menos, um ser simplificado, amputado. É um homem inexistente. O Papa Bento XVI, em sua magnífica obra “Dogma e Anúncio”, escrita enquanto ainda era cardeal, desfere duros golpes contra essa concepção materialista sobre Deus, o homem e a História: “Apenas quem está tão farto que pode ter tudo o que deseja, nota como tudo é pouco. Quando todos os homens tiverem tudo o que desejam, ainda estarão longe de ser felizes. Pelo contrário, o mundo ocidental de hoje prova que é então que eles são totalmente infelizes, que então apenas começam os seus problemas. Nesse sentido, o homem não pode ser remido por meio de pão e dinheiro. Ele tem fome de alguma coisa a mais. A fuga para os entorpecentes, que agora se torna um fenômeno de massa, mostra-o até a evidência. O homem precisa de sentido, não menos do que de pão. Durante todos os séculos, a Igreja deu aos homens uma consciência da sua dignidade interna que ninguém lhes pode tirar; com a esperança da fé, deu-lhes um sentido que os fazia ricos e livres. A tolice de designar tudo isso como ‘ópio para o povo’ aparece numa situação em que o povo, de fato, toma ópio, precisamente porque tem a prosperidade que deveria tornar supérfluo esse ópio”.  

Quando, estudando a história recente, lançamos o nosso olhar para os inúmeros massacres perpetrados por governos marxistas contra a liberdade religiosa, engolida no furor revolucionário, não podemos ser ingênuos a ponto de pensar que são somente desvios pontuais de conduta, sobre os quais se responsabilizam apenas os líderes políticos que os promoveram, mantendo assim intacta e imaculada a doutrina de Karl Marx. Na verdade, o que se viu na história é a consequência lógica e inevitável da aplicação das próprias ideias do filósofo alemão. O pai do socialismo é um inimigo pessoal de Deus e da religião.

Até aqui, fiz uma exposição sobre as bases materialistas e antirreligiosas do socialismo. Agora, pretendo apontar alguns outros graves equívocos presentes nos fundamentos dessa doutrina e que já foram reiteradamente condenados pelo Magistério da Igreja.

O ataque do socialismo aos direitos naturais do homem

O socialismo, quer em sua versão de caráter violentamente revolucionário (bolchevique), quer em seu modus operandi mais gradual (socialismo fabiano), avança rumo a um objetivo muito claro: a coletivização da propriedade. Os caminhos do movimento socialista podem ser metodologicamente distintos (confisco armado de propriedades ou um progressivo aumento de controle, restrições e tributos mediante a centralização do poder), mas a ideologia que os alimenta é equivalente.

A Igreja, porém, vê a propriedade privada, inclusive sobre os bens de produção (Pacem in Terris, n°. 21) como um direito inerente à natureza humana. Definida pelo Papa Leão XIII como “trabalho acumulado”, a propriedade é uma garantia de liberdade. Se não somos donos do fruto de nosso trabalho (não só para o nosso sustento imediato, mas também para nosso bem-estar e segurança), nos convertemos facilmente em escravos do Estado. O próprio Papa Leão XIII afirmou, ainda no século XIX: "Porque enquanto os socialistas, apresentando o direito de propriedade como invenção humana contrária a igualdade natural entre os homens; enquanto, proclamando a comunidade de bens, declaram que não pode tratar-se com paciência a pobreza e que impunemente se pode violar a propriedade e os direitos dos ricos, a Igreja reconhece muito mais sábia e utilmente que a desigualdade existe entre os homens, naturalmente dessemelhantes pelas forças do corpo e do espírito, e que essa desigualdade existe até na posse dos bens. Ordena, ademais, que o direito de propriedade e de domínio, procedente da própria natureza, se mantenha intacto e inviolado nas mãos de quem o possui, porque sabe que o roubo e a rapina foram condenados pela lei natural de Deus" (Quod Apostolici Muneris, nº. 28/29).

À luz da lei de Deus e do Magistério da Igreja, constatamos que não se pode, portanto, na intenção de gerar mais igualdade, suprimir a liberdade de cada indivíduo na obtenção e manutenção de seus bens. O Papa Bento XVI ensinou que sob nenhum pretexto essa eliminação da liberdade seria boa: “Visto que o homem permanece sempre livre e dado que a sua liberdade é também sempre frágil, não existirá jamais neste mundo o reino do bem definitivamente consolidado. Quem prometesse o mundo melhor que duraria irrevogavelmente para sempre, faria uma promessa falsa; ignora a liberdade humana. A liberdade deve ser incessantemente conquistada para o bem. A livre adesão ao bem nunca acontece simplesmente por si mesma. Se houvesse estruturas que fixassem de modo irrevogável uma determinada – boa – condição do mundo, ficaria negada a liberdade do homem e, por este motivo, não seriam de modo algum, em definitivo, boas estruturas” (Spe salvi, n0 24). Uma nação em que a distribuição das riquezas dependa de uma elite burocrática tende ao totalitarismo. Se o Estado paga as contas, é ele então quem decide o que é necessário para cada um e até que ponto o é. Se o indivíduo precisar de mais do que aquilo que lhe for concedido, precisará exercer seu legítimo direito de propriedade na clandestinidade e sob constante ameaça de ser denunciado. O poder da burocracia sobre as famílias torna-se, dessa forma, ilimitado. Com muito bom-humor, Chesterton explicou que o “problema com o comunismo é querer reformar o batedor de carteiras proibindo os outros de usarem bolsos”. Para não sermos seduzidos pelas mentiras socialistas, devemos dirigir nosso olhar com atenção para as graves violações aos direitos humanos ainda praticadas por governantes socialistas em todo o mundo. O mesmo Chesterton resume com argúcia a experiência socialista em Eugenics and other evils: “Adicionaram todas as tiranias burocráticas do Estado Socialista às velhas tiranias plutocráticas do Estado Capitalista. Não diminuíram a desigualdade do Estado Capitalista. Simplesmente destruíram as liberdades individuais que havia entre suas vítimas”.

A importância da encíclica Centesimus Annus

De fato, como vimos, não há maneira de se chegar plenamente ao objetivo socialista sem que o poder econômico seja totalmente absorvido pelo poder político. Essa excessiva concentração de poder rouba dos cidadãos o seu direito à autonomia, que é um princípio defendido pela Doutrina Social da Igreja para que a dignidade humana seja sempre preservada, conforme assevera São João Paulo II, em sua encíclica Centesimus Annus, nº. 13: “Aprofundando agora a reflexão delineada (...) é preciso acrescentar que o erro fundamental do socialismo é de caráter antropológico. De fato, ele considera cada homem simplesmente como um elemento e uma molécula do organismo social, de tal modo que o bem do indivíduo aparece totalmente subordinado ao funcionamento do mecanismo econômico-social, enquanto, por outro lado, defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem e do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autônomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social. Desta errada concepção da pessoa deriva a distorção do direito, que define o âmbito do exercício da liberdade, bem como a oposição à propriedade privada".

É interessante notar que essa encíclica, a Centesimus Annus, foi escrita por São João Paulo II em 1991, na celebração do centenário de outra encíclica que condenava com veemência o socialismo: a Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, que, por sua vez, foi publicada no dia 15 de maio de 1891. Chama a nossa atenção o modo como o Papa polonês louva a acuidade demonstrada por seu predecessor na previsão exata (ainda no século XIX) dos malefícios que a efetivação da doutrina socialista causaria no século seguinte: "Aquele Pontífice (Leão XIII), com efeito, previa as consequências negativas, sob todos os aspectos - político, social e econômico - de uma organização da sociedade, tal como a propunha o socialismo, e que então estava ainda no estado de filosofia social e de movimento mais ou menos estruturado. Alguém poderia admirar-se do fato de que o Papa começasse pelo socialismo a crítica das soluções que se davam à ‘questão operária’, quando ele ainda não se apresentava - como depois aconteceu - sob a forma de um Estado forte e poderoso, com todos os recursos à disposição. Todavia, Leão XIII mediu bem o perigo que representava, para as massas, a apresentação atraente de uma solução tão simples quão radical da ‘questão operária’” (n°. 12).

A leitura da Centesimus Annus nos revela a grande lucidez com a qual São João Paulo II tratou a questão social. Ao mesmo tempo em que condena um sistema baseado no monopólio e na prevalência absoluta do capital sobre o ser humano, o Papa faz questão de ressaltar que o socialismo não deve ser procurado como modelo alternativo, pois, na verdade, não passa de um “capitalismo de estado” (nº. 35). A Igreja propõe, então, “uma sociedade do trabalho livre, da empresa e da participação, que não se contrapõe ao livre mercado, mas requer que ele seja oportunamente controlado pelas forças sociais e estatais, de modo a garantir a satisfação das exigências fundamentais de toda a sociedade” (idem).

Agora, farei uma abordagem sobre a revolução cultural promovida pelo socialismo a partir de meados do século XX e apontarei alguns de seus efeitos sobre a educação e o debate público contemporâneos.

A destruição da família

               

A doutrina socialista considera a família um espaço de proteção da propriedade privada e de autoritarismo. Pulverizá-la sempre foi, em decorrência disso, um dos objetivos da revolução, desde os seus teóricos. Podemos notá-lo em Friedrich Engels, coautor do famoso Manifesto do Partido Comunista (1848), que publicou em 1884 a obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. Karl Marx já havia morrido, mas deixara alguns manuscritos, que foram então organizados por ele. Nessa obra, encontramos o seguinte: “A família monogâmica baseia-se no domínio do homem com a finalidade expressa de procriar filhos cuja paternidade fosse indiscutível e essa paternidade é exigida porque os filhos deverão tomar posse dos bens paternos, na qualidade de herdeiros diretos (…). A monogamia, portanto, não entra de modo algum na história como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de casamento. Pelo contrário, surge sob a forma de subjugação de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, em toda a pré-história. Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro o seguinte: ‘A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos’”.

Se a família é entendida pelos pais do socialismo como um ambiente de dominação e opressão, mais tarde reproduzido em larga escala pela sociedade civil, torna-se lícito e até desejável trabalhar pela sua desconstrução. Na mesma obra, Engels afirma: “Hoje posso acrescentar que a primeira oposição de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia, e que a primeira opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino”.

Para a fé católica, porém, o casamento é baseado na verdade de que homens e mulheres são complementares, no fato biológico de que a reprodução depende de um homem e de uma mulher, e na realidade de que crianças precisam de um pai e de uma mãe. A família, tal como querida por Deus, deve ser um ambiente amoroso e gerador de vida. O matrimônio é o meio menos restritivo que a sociedade possui de assegurar o bem-estar das crianças. Fomentá-lo significa fortalecer a sociedade civil e reduzir a função do Estado. É evidente, em vista disso, que o sistema socialista, invocando as mais cândidas justificativas (como “igualdade” e “justiça social”) para exercer um domínio oniabrangente sobre a sociedade, encontrará nas famílias uma de suas principais resistências. A “libertação sexual” tão propalada no decorrer do século XX está intimamente ligada a esse ideal de “libertação social”, como atesta Kate Millet, em sua obra Política Sexual, que é considerada o “Manifesto Feminista”: “Engels, assim como Marx, compreendeu o protótipo histórico e conceitual de todos os subsequentes sistemas de poder; de todas as relações econômicas opressoras e o próprio fato da opressão em si (…). Para que uma revolução sexual progredisse, seria necessária uma transformação social verdadeiramente radical e a alteração do matrimônio e da família como foram conhecidas através de toda história”. O colapso da autoridade paternal na família tende obviamente a aumentar a prontidão da geração vindoura em aceitar alterações sociais. Embora esse fato passe despercebido para muitas pessoas, vê-se claramente que as duas causas (a anarquização da sexualidade e a concentração de poder político nas mãos de partidos representantes da utopia) cooperam fortemente entre si. As megabilionárias fundações internacionais que atualmente patrocinam toda essa revolução de costumes ao redor do mundo, dividindo pessoas e centralizando poder, unem os dois elementos com maestria.

Na verdade, os socialistas entenderam desde o início a necessidade de atacar a família. Quem nos confirma essa realidade é o renomado historiador inglês Orlando Figes, professor na Universidade de Londres e um dos maiores especialistas em História da Rússia, em seu livro Sussurros: A Vida Privada na Rússia de Stálin: "A família era o primeiro campo de batalha dos bolcheviques. Nos anos 1920, eles tinham por artigo de fé que a 'família burguesa' era socialmente danosa: auto-centrada e conservadora, era vista como um reduto de religião, superstição, ignorância e preconceito; estimularia o egoísmo e o consumismo, oprimindo mulheres e crianças. Os bolcheviques esperavam que a família desaparecesse à medida que a Rússia soviética se tornasse um sistema socialista pleno, no qual o Estado assumiria a responsabilidade por todas as funções domésticas básicas, fornecendo berçários, lavanderias e refeitórios em centros públicos e conjuntos habitacionais. Liberadas do trabalho doméstico, as mulheres estariam livres para integrar a força de trabalho em pé de igualdade com os homens. O casamento patriarcal, com sua moral sexual submissa, deveria morrer e ser substituído - assim acreditavam os radicais - por 'uniões de amor livre' (...). O ABC do Comunismo (1919) vislumbrava uma sociedade futura na qual os pais já não usariam o pronome 'meu/minha' para se referir aos filhos, que seriam criados de maneira comunitária".       

Entretanto, os caminhos do século XX fizeram a batalha contra a família concentrar-se no front cultural com mais ênfase do que na ação governamental imediata. Percebeu-se que a família era só uma das instituições da civilização ocidental que deveriam ruir para dar lugar a uma nova sociedade, como veremos a seguir.

  

A Revolução Cultural

Até as primeiras décadas do século XX, o discurso socialista esteve centrado na unidade do proletariado mundial (assim dizia o Manifesto: “Trabalhadores do mundo, uni-vos!”). Todavia, a Primeira Guerra Mundial mostrou que o proletariado estava mais apegado aos sentimentos nacionalistas que à própria “consciência de classe”. Além disso, o aumento da produção industrial melhorou a qualidade de vida de um modo geral, tornando improvável que os proletários pudessem ser a ferramenta para derrubar o Ocidente industrializado. A classe trabalhadora estava “anestesiada”. Seria muito difícil, por conseguinte, que um ataque frontal à burguesia e ao capitalismo fosse bem-sucedido. Conscientes de tudo isso, alguns dos mais importantes intelectuais marxistas de então, como o alemão Willi Munzenberg e o húngaro Georg Lukács, passaram a defender que a ação política e econômica do movimento comunista não seria eficaz se não viesse acompanhada de uma erosão da cultura ocidental e todo o seu lastro: moral religiosa, família tradicional, amor à pátria, etc.

Sob a inspiração de Georg Lukács, um grupo de intelectuais começou a se reunir a partir de 1923 na cidade de Frankfurt, na Alemanha. Era uma espécie de think tank marxista, nomeado oficialmente como Instituto para a Pesquisa Social, porém mundialmente conhecido como “Escola de Frankfurt”. Críticos da experiência soviética, os intelectuais pertencentes a este grupo defendiam que “a ideia e a estratégia tradicional de revolução estão ultrapassadas” e que “precisamos empreender um tipo de desintegração sistêmica que seja difuso e disperso” (Herbert Marcuse). O abandono do modelo clássico da luta de classes (pois a classe operária já não é revolucionária) acontece em benefício de uma nova sensibilidade revolucionária. A revolução começa, então, a se desenvolver no domínio das relações humanas em sentido lato, conclamando à insurgência toda espécie de minorias oprimidas. A luta de classes, a partir de agora, estende-se de modo amplo a todo o conjunto das relações humanas, sempre identificando uma classe opressora a ser derrubada e uma classe oprimida que se torna fonte de energia revolucionária: homens x mulheres, heterossexuais x homossexuais, nativos x imigrantes, brancos x negros, cristãos x religiões minoritárias, professores x alunos (a famosa “pedagogia do oprimido” nada mais é do que a velha luta de classes aplicada às instituições de ensino) e assim por diante. A transformação da sociedade civil num palco de eterno conflito de “todos contra todos” torna-se, com isso, uma excelente justificativa para concentrar poder nas mãos da classe política e instrumentalizar eleitoralmente as minorias. Governos socialistas nunca conseguiram o controle total da economia, que é impossível, mas terminam controlando todo o resto: imprensa, faculdades, escolas, meios de cultura, sempre reclamando para si o monopólio das boas intenções.

A presença de alguns dos intelectuais frankfurtianos nos EUA, como Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse, que lá se refugiaram quando o Nazismo se instalou na Alemanha, permitiu que a revolução cultural tivesse forte impulso entre a juventude americana, dando origem a um processo inédito de reviravolta dos costumes naquele país. A New Left (nova esquerda) surgida a partir dos anos 60, com o seu discurso “diversitário” (feminismo, abortismo, gayzismo etc.) alcançou a hegemonia cultural não somente nas universidades e na mídia americana, mas em todo o mundo ocidental. Some-se a isso a queda da URSS, que deixou os inúmeros grupos de militantes socialistas no mundo inteiro desorientados. Essa grande massa, que já não tem perspectivas religiosas e esperanças transcendentes, não consegue viver sem “causas sociais” que ofereçam sentido às suas vidas. Por isso, se tornam facilmente entusiastas e difusores de todas essas causas dispersas que estão promovendo a olhos vistos uma grande revolução de mentalidade e costumes em escala global.   

Em artigo publicado no semanário católico The Wanderer, 11 de dezembro de 2008, Timothy Matthews lista algumas das consequências práticas da revolução cultural promovida pela Escola de Frankfurt, tais como a fragilização das autoridades tradicionais (desde os pais em casa, passando pelos sacerdotes nas igrejas, até os professores nas escolas), a desagregação da família através de numerosos fatores (incentivo ao sexo livre, “casamento gay”, guerra entre os sexos e ideologia de gênero), a imigração em massa como forma de destruir as identidades nacionais e religiosas, a educação sexual para crianças (em conformidade com cartilhas progressistas, podendo ser mais convenientemente chamada de “deformação sexual”), a dependência do Estado ou de benefícios estatais, um clima de suspeição sobre o sistema legal (não custa lembrar que defendemos os “direitos humanos” para toda a população, mas desconfiamos quando os mesmos são invocados parcialmente, tornando-se pretexto para favorecer alguns coletivos manipulados pelos partidos e entidades socialistas, acirrando mais ainda os conflitos sociais), o controle da mídia, entre outros frutos que colhemos nos nossos dias e que estão ao alcance da visão de qualquer indivíduo que observe atentamente as mudanças sociais das últimas décadas.

“A causa nunca é a causa. A causa é sempre a revolução”. É esse o princípio que permite à nova esquerda, autoproclamada “progressista”, apoiar causas tão claramente contraditórias não somente em épocas diferentes (como no caso dos homossexuais, que sempre foram perseguidos por governos socialistas, mas passaram a ser exaltados por eles há pouco tempo), mas até simultaneamente: pregam o feminismo e flertam com o Islamismo. O que poderia haver de comum entre essas duas causas a não ser o combate aos alicerces cristãos sobre os quais foi construído o mundo ocidental?

É igualmente relevante a atuação do filósofo comunista italiano Antonio Gramsci, que desenvolveu, na primeira metade do século XX, a mesma ideia de revolução cultural paralelamente ao trabalho efetuado pela Escola de Frankfurt. Gramsci defendia a necessidade de uma “hegemonia política” mesmo antes de se assumir o poder governamental. A mudança do “senso comum” da sociedade, ainda impregnado, segundo ele, de religião e conservadorismo, promovida por meio da ocupação lenta dos espaços de irradiação cultural, faria os indivíduos mais simpáticos ao socialismo, tornando desnecessária a imposição do mesmo pela violência. Podemos notar a aplicação dessas ideias até mesmo nas igrejas, através, por exemplo, da Teologia da Libertação, que se utiliza da linguagem teológica, esvaziando-a de todo o seu conteúdo transcendente, para pregar o socialismo. Algumas falsificações e deformações da doutrina cristã, como “Jesus foi o primeiro socialista da História” ou “o maior objetivo do Evangelho é a construção de uma sociedade igualitária”, ainda hoje são ouvidas com frequência em muitas de nossas paróquias.

Aqui mesmo na nossa América Latina, temos visto a ascensão de partidos socialistas ao poder já há alguns anos, apoiados por acordos internacionais de ajuda mútua. Esse fenômeno é grave e deve nos incomodar. Há uma infeliz tendência no nosso povo a somente se preocupar com colapsos econômicos e não reagir contra todas as investidas culturais que estamos sofrendo, descristianizando nossos costumes mediante uma agenda que já vem fabricada por entidades internacionais e que vai sendo gradativamente incorporada à nossa legislação e à nossa vida. Tenhamos a coragem de “combater o bom combate”, como nos ensinou o intrépido São Paulo, e confiemos o nosso Brasil à proteção de Nossa Senhora Aparecida, pedindo que Ela sempre proteja as nossas famílias e a identidade católica do nosso povo, apontando-nos os caminhos de Jesus.

Vitor Gomes Coelho Júnior – professor de Filosofia

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